por Marcus Vinícius Diniz
Em uma Istambul contrária a cartões postais, o road-movie turco-georgiano Caminhos Cruzados, dirigido por Levan Akin explora as dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans na sociedade do Leste Europeu, revelando as mazelas da capital turca sob uma perspectiva marginalizada. Uma professora aposentada se une a um jovem rapaz desajustado em busca de sua sobrinha, uma mulher trans que foi expulsa de casa por sua família e que supostamente se refugiou na capital turca.
Baseado em uma realidade infelizmente comum, o filme acerta em apresentar a dualidade da protagonista enquanto uma pessoa de idade que tem enraizado em si o preconceito, mas também o amor por sua sobrinha. E ao lado de Achi, interpretado por Lucas Kankava, uma dramatização é construída sobre a confusão interna de Lia, a professora interpretada por Mzia Arabuli, que passa a desenvolver uma relação de amor e ódio pelo jovem problemático enquanto dentro de si há essa busca por respostas sobre sua sobrinha Tekla.
O nome “Caminhos Cruzados” faz juz ao filme, ele sendo uma obra de inúmeros subnúcleos que se interligam para a execução do ponto maior. A transsexualidade nunca é deixada de lado, principalmente quando Lia e Achi passam a buscar por Tekla dentro de uma comunidade trans na periferia de Istambul, é notável desconfiança, a fagulha de uma intriga e a agressão moral que os considerados “normais” aplicam sobre as meninas. Cruel, o filme demonstra o quão sujo uma sociedade pode ser para suprir seu ego frágil, enquanto aquelas que ainda resistem são submetidas a prostituição e trabalhos desvalorizados socialmente. Serem desmoralizadas por agentes do Estado, pelas pessoas que as veem nas ruas e pelos abusadores que tentam se aproveitar do estado dessas garotas. Uma mulher trans pode sim ser uma advogada.
“Não sei nada sobre árabe ou persa,
Eu não confio na fala
Sigo o caminho correto
Do Deus glorioso
Não me importo com o caminho
Pregado pelo Diabo”.
A câmera age como um olhar invisível, apesar de ser um filme autoral, o convencional é replicar características do fazer fílmico comercial. No filme de Akin, há um cuidado em como inserir seus personagens na capital, sinto um cuidado muito similar ao documentarismo, principalmente em planos gerais que os personagens são deixados totalmente de lado para destacar a sociedade quanto persona, pessoas comuns andando em avenidas estreitas ou bebendo uma cerveja em um bar de esquina. É interessante pensar em como a câmera assume um jogo de ideias fazendo uma dinamicidade com a montagem transitando entre os personagens, enquanto todos eles passam por dramas similares em uma cidade tão grande e tão preconceituosa. Enquanto Lia quer encontrar sua sobrinha, Achi que a companhia de alguém, Evrim, interpretada por Deniz Dumanli, busca ser reconhecida como mulher perante o governo. Todos estão em uma luta para encontrar algo, conseguir algo, derrotar um trauma inconveniente, e pensando em um todo, esse trauma vence, exceto no caso de Lia.
É apaixonante pensar na narrativa do filme após assisti-lo, pois somos inseridos em um jogo de gato e rato tentando criar uma conexão entre os personagens que na realidade, são totalmente desconhecidos e que não tem essa tal conexão. Somos instigados a pensar que Evrim é a garota procurada, principalmente pela montagem paralela que surge na metade do filme e passa a destacar a personagem, além da professora e o rapaz. Akin nos engana; Evrim é Evrim, e Tekla ainda está em algum lugar da grande Istambul. E nós fomos feitos de palhaços! E isso é um máximo, é assim que se fazem bons filmes, filmes que não se sustentam na exposição de suas intenções, e que na verdade cria um vasto universo de possibilidades que devemos imaginar.
Senti grandes semelhanças de Caminhos Cruzados com Nascidos em Bordéis, dirigido por Zana Briski e Ross Kauffman. Ambos filmes assumem papeis sociais que interagem entre si, apesar de um ser uma ficção e o outro um documentário. O filme turco assume um compromisso em tornar crível, considerando a sua estrutura ficcional, o contato com uma cultura apagada pela sociedade turca, e que furou a bolha e foi capaz de vencer prêmios, entrar no mercado comercial de cinema e entrar no catálogo da renomada Mubi. Nascidos em Bordéis, um filme por essência documental, denuncia a realidade das mulheres submetidas a prostituição na Índia, e por meio da fotografia e aparatos audiovisuais, educa crianças a fotografar e pensar artisticamente para fugir do ambiente insalubre que estão inseridas, é deprimente pensar que elas acabaram indo para o mesmo caminho que suas mães. Com papeis artivistas, os filmes conseguem triunfar em suas divergentes intenções, apesar de serem similares, e no caso de Nascidos em Bordéis, ganhar o Oscar de Melhor Documentário não é para qualquer um, principalmente na grande massa de produção documental, apesar de que um prêmio da indústria pecaminosa hollywoodiana não seja um parâmetro para medir o sucesso de um produto artístico e de denúncia.
Na posição de um espectador, sinto que meu dever é captar suas ideias e refletir sobre a crítica que busca evidenciar, e vejo que o diretor soube expressar bem e transformar em imagens e sons o quão agressiva é a cidade de Istambul em um recorte temático tão necessário, a produção de um cinema LGBTQIAP+ tem sido massiva, mas cada trabalho tem uma identidade única e que provoca cada vez mais um senso de justiça perante uma comunidade tão ameaçada. E na posição de um estudante de cinema, o filme brinca narrativamente criando núcleos únicos que se interligam, e que por uma pequena ação, somos feitos de tolos e qualquer interpretação prévia vai de ralo. Além de que o filme caminha por uma trilha muito distante do cinema no qual estamos habituados, os planos gerais tem uma cor diferente, um distanciamento diferente e uma intenção diferente de se comunicar conosco, e isso é um máximo, criar uma identidade própria é essencial e isso obriga a cinefilia a trabalhar para compreender e estar ciente do que caracteriza o fazer fílmico turco-georgiano. O cinema antes de ser uma arte para as massas, apesar de que tem sido cada vez menos democrática, é uma arte identitária. Se eu vejo um filme brasileiro e não consigo me sentir representado ou familiarizado a tal recorte espacial, acredito que é um filme que foi mal executado. Tem que ser criada uma afeição ao espaço que está sendo trabalhado, seja pelo design de produção ou pela composição sonora, Caminhos Cruzados sabe fazer isso muito bem.
Publicado em: 18/10/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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